Câncer em répteis?

Sim. Como no ser humano, nos demais mamíferos e nas aves, os répteis podem desenvolver tumores diagnosticados como câncer.

O câncer, chamado cientificamente de “neoplasma”,  é definido como um crescimento de células que se torna anormal porque não responde aos mecanismos de controle do organismo.  Esse crescimento anormal é iniciado por uma mutação genética e pode ser transmitido para os descendentes(1).  Mas, apesar dessa definição, o correto é “O câncer não é UMA doença, mas MUITAS”, como descreveu  Siddhartha Mukherjee, em seu livro “O imperador de todos os males”(2), no qual ele quis dizer que há muitas formas clínicas de manifestação de câncer, por isso nem sempre eles são fáceis de diagnosticar.

Microorganismos ou fatores ambientais podem iniciar mutações que originam um câncer. Porém, o envelhecimento da máquina orgânica também pode gerar falhas no controle celular que exclui células mutadas. Desta forma, quanto mais os homens e os animais vivem, mais predispostos ficam ao desenvolvimento de câncer.  Estudos epidemiológicos mostram que os fatores de risco para humanos incluem dieta pobre, inatividade física, tabagismo e consumo de álcool, infecções sexualmente transmissíveis e poluição ambiental(3).

Em animais, os vírus são a causa de câncer mais identificada e mais pesquisada. Os modelos animais têm ajudado a conhecer vários tipos de câncer e desenvolver tratamentos (1).

Vários casos em répteis cativos têm sido relatados nas últimas quatro décadas. A classificação dos tumores segue os protocolos de identificação de câncer em humanos ou em animais domésticos. Os tumores são classificados de diferentes formas: benignos (limitados e não invasivos) ou malignos (que podem invadir e se disseminar); carcinomas (derivados de tecido epitelial), sarcomas (derivados de tecido conjuntivo) ou ainda tumores mistos (3). Dentre os casos registrados em répteis, existe uma ampla gama de tipos celulares de tumores, e, diferente dos humanos, não é possível ainda apontar para um tipo mais frequente.

Um estudo retrospectivo no Zoológico de Sacramento (EUA) entre 1981-1991, revelou que 21% dos registros de necropsia traziam diagnóstico de neoplasmas em serpentes. Foram observados principalmente tumores internos (fígado, pâncreas, rins, gônadas etc.), dentre os quais o tipo mais prevalente foi o sarcoma de células fusiformes (4).  Outro estudo semelhante no Zoológico de Washington (EUA), observou 12% de neoplasias em serpentes, entre 1978-1997. A maioria dos casos aconteceu em fêmeas, também de tumores internos em órgãos variados. A média de idade dos animais acometidos foi de 9 anos(5). Finalmente, um levantamento recente com 41 serpentes no Zoológico de São Paulo mostrou 53% de ocorrências, sendo as Bothrops sp. as serpentes mais acometidas (6).

Dentre relatos atribuídos a vírus oncogênicos (aqueles que podem causar mutações que geram câncer) tem-se alguns registros de retrovírus em carcinomas em Bothrops jararacussu(7), Corallus caninus(8) e Vipera russeli(9), além de estudos com fibropapilomas em tartarugas marinhas, sugestivos de associação com Herpesvírus (10)(ver texto “Herpesvírus em répteis” aqui no Blog!).

Embora a grande maioria dos diagnósticos de câncer em répteis ocorra apenas à necrópsia, uma pesquisa recente sobre caracterização de tumores de pele e tecidos moles em serpentes teve 87% das amostras obtidas por cirurgia em animais vivos, o que constitui, além de método diagnóstico, o tratamento de escolha nos casos em que os tumores são bem delimitados, não invasivos e de crescimento lento. Contudo, como em outros grupos de animais e nos humanos, pode ocorrer reincidência(11).

No Brasil existem alguns relatos de casos isolados na literatura, como fibrossarcoma oral e sarcoma fusiforme em Jararacas (12,13) e melanoma cutâneo(14) em jabuti, mas ainda não temos estudos de prevalência sobre câncer em répteis.

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Figura 1: Fibrossarcoma oral em Bothrops pubescens (12).

Figura 2: Sarcoma fusiforme em Bothrops leucurus (13).

(Figuras 1 e 2 licenciadas CC BY-NC 4.0)

Na rotina do NUROF, tivemos o diagnóstico pós-morte de pelo menos dois tumores internos,  em serpentes da espécie Philodryas nattereri. O primeiro foi um colangiocarcinoma no fígado, caso que foi publicado na Conferência Internacional de Medicina de Animais Silvestres (Itália, 2017). O segundo caso foi um hemangioma periovariano, que será publicado em breve.

4Figura 3: Colangiocarcinoma em fígado de Philodryas nattereri (15) (Foto: Braga, RR)

Opções de tratamento são principalmente locais, ou seja, direto no tumor.  Técnicas conservativas incluem radioterapia, quimioterapia intralesional e terapia fotodinâmica.  Técnicas cirúrgicas compreendem ressecção cirúrgica convencional, criocirurgia, cirurgia a laser e eletrocauterização. A quimioterapia sistêmica é reservada para casos de tumores disseminados (metástases), podendo ser utilizadas as mesmas drogas anticancerígenas humanas. Naturalmente, a escolha da terapia depende de vários fatores, incluindo o custo-benefício. Não existem estudos de aplicação farmacológica dessas drogas especificamente em répteis, portanto os resultados nem sempre são previsíveis(16).

Apesar de muitos tratamentos não terem bons prognósticos, os autores são otimistas em relação à oncologia aplicada a répteis. Consideram que muitos avanços foram feitos nas duas últimas décadas, que é possível se diagnosticar os tumores mais cedo e trata-los usando as mesmas diretrizes aplicadas a cães e gatos(17).

Autora: Roberta da Rocha Braga



Referências

  1. Kusewitt, D.F. Neoplasia and Tumor Biology. In: Zacchary, J.F.; McGavin, M.D. Pathology basis of veterinary disease. 5th Saint Louis: Elsevier Mosby, 2012. pp. 289-321
  2. Mukherjee, S. O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 493p.
  3. A situação do câncer no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/situacao_cancer_brasil.pdf.
  4. Ramsay, E.C. et al. A retrospective study of neoplasms in a collection of captive snakes. Journal of Zoo and Wildlife Medicine 27(1): 28-34, 1996.
  5. Catão-Dias, J.L.; Nichols, D.K. Neoplasia In Snakes At The National Zoological Park, Washington, DC (1978–1997). J. Comp. 1999 Vol. 120, 89–95.
  6. Santos, S.P. et al. Neoplasms in captive snakes. Comp. Path. 2018, Vol. 158, 93e149.
  7. Carneiro, SM, Tanaka, H, Kisielius, JJ, Sesso, A: Occurrence of retrovirus-like particles in various cellular and intercellular compartments of the venom glands from Bothrops jararacussu. Res Vet Sci 53:399–401, 1992.
  8. Orós, J., Lorenzo, H., Andrada, M., & Recuero, J. (2004). Type A–like Retroviral Particles in a Metastatic Intestinal Adenocarcinoma in an Emerald Tree Boa (Corallus caninus). Veterinary Pathology, 41(5), 515–518.
  9. Lunger, PD, Clark, HF: Intracytoplasmic type A particles in viper spleen cells. J Natl Cancer Inst 58:809–811, 1977.
  10. Jacobson E, Buergelt C, Williams B, Harris RK. Herpesvirus in cutaneous fibropapillomas of the green turtle Chelonia mydas. Dis Aquat Organ. 1991;12:1–6
  11. Dietz,J. et al. Cutaneous and Subcutaneous Soft Tissue Tumours in Snakes: A Retrospective Study of 33 Cases. Comp. Path. 2016, Vol. 155, 76e87.
  12. Santos, E.D. et al. Oral fibrosarcoma in jararaca (Bothrops pubescens): anatomopathological and immunohistochemical aspects. Pesq. Vet. Bras. 35(7):664-670, julho 2015.