Cobra ou serpente? Existe mesmo um termo correto?

Na comunidade acadêmica, é bastante comum a prática do policiamento (muitas vezes de forma arrogante) do uso de termos populares em detrimento dos técnico-científicos por parte de muitos de seus membros. Entre alguns biólogos, por exemplo, há uma correção corriqueira sobre o uso do termo “cobra” (Fig. 1).

Philodryas olfersii,chamada popularmente de cobra-verde, cipó-verde ou cipó-listrada . Foto: Luan Pinheiro

Figura 1: Philodryas olfersii,chamada popularmente de cobra-verde, cipó-verde ou cipó-listrada. Foto: Luan Pinheiro

“O correto não é cobra (Fig. 2), é serpente. Cobra é nomenclatura para as serpentes do gênero Naja”. Quantas dezenas de vezes já não ouvimos isso? Pois bem, o post de hoje é fruto de conversas entre os dois autores – por sinal, dois mastozoólogos – e de pesquisas avulsas em momentos avulsos, que só aqueles que sofrem de insônia (todos os acadêmicos?) sabem como é. Tentaremos mostrar aqui que essa correção não faz muito sentido do ponto de vista etimológico e histórico.

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Figura 2: Colubrídeo (Oxybelis aeneus), Cobra-cipó. Foto: Paulo mesquita.

1) A origem da palavra “cobra “

A palavra “cobra” em português vem do latim “coluber”/”colubra”. Coluber vem do proto-indo-europeu *(s)k(‘)ol-. e também significa “verme”. O Proto-Indo-Europeu deu origem a um monte de línguas, dentre elas as germânicas, que inclui o inglês. Já deu pra perceber que a origem da palavra é bem mais antiga do que qualquer estudo de descrição herpetológica, não é? Mas tem mais. Vejamos.

2) A origem da palavra “serpente”

“Serpente” também vem do latim “serpēns”, que significa “aquele que rasteja”. Assim como a palavras “hérpō” (de onde se origina herpetologia), do grego antigo e “sárpati”, do Indiano Antigo (ambas também significam “aquele que rasteja”). Todas elas tem a mesma origem, a palavra  proto-Indo-européia “*serpe-“.

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Figura 3: Serpente do grupo dos Viperídeos (Crotalus durissus). Foto: Hugo Fernandes

3) A origem da palavra “naja”

A palavra “naja” vem do Hindi antigo “nāgá, que significa serpente e é originária do Proto-Indo-Europeu “*(s)nēg-o-“, que deu origem à palavra do inglês antigo “snaca”, que no inglês moderno escreve-se como “snake”. Sendo assim, as palavras “naja” e “snake” tem uma mesma origem.

4) A origem da palavra “cobra” na língua inglesa

A palavra “cobra” realmente é utilizada na literatura de língua inglesa para designar alguns ofídios da Família Elapidae (Fig. 4), conhecidos também como “najas”, animais ainda hoje símbolos da Índia, país sob domínio da Coroa Britânica até 1950. Entretanto, é importante ressaltar que a Índia, antes do domínio britânico, era de domínio ibérico. A palavra “cobra” já era (e continua sendo) utilizada em Portugal para designar os ofídios de uma maneira geral. Além disso, os portugueses antes mesmo de chegarem à Índia, já sabiam da existência das chamadas “cobras-de-capelo” (é só lembrar que existem najas no Egito e que eram conhecidas desde a Idade Média e até antes disso). Quando viram que em terras hindus também havia “cobras-de-capelo”, assim as denominaram. Essa nomenclatura é uma referência à capacidade desses ofídios em expandirem suas costelas anteriores quando ameaçadas, o que lembra um “capelo”, que tem origem latina e significa “chapéu”. Ou seja, as najas seriam as “cobras-de-chapéu” ou “cobras-de-capuz”.

Figura 4: Elapídeo (Micrurus sp.), Cobra-coral verdadeira. Foto: Diego Soares.

No entanto, com o advento do domínio britânico em território indiano, as primeiras literaturas de grande alcance mundial envolvendo descrições de répteis da Índia eram descritas em língua inglesa, as quais utilizaram traduções livres das denominações portuguesas (que já estavam disseminadas em bibliografias inclusive) e especificaram o termo “cobra” para as serpentes do gênero Naja.

Obs.: e nessas traduções, o “de-capelo” foi embora sabe-se lá o motivo.

5) E como nasceu essa história de que “cobra” é tecnicamente errado?

Agora vamos às divagações. Não se sabe ao certo, mas essa história de que o correto seria “serpente” e não “cobra” pode ter nascido do estudo de zoólogos brasileiros antigos sobre as bibliografias britânicas, aliado à existência de outro mito ainda bastante corrente: o de que, em 1500, os primeiros navegantes portugueses que aqui desembarcaram acharam que estavam chegando à Índia (sabemos bem hoje que isso não é verdade). A partir dessas premissas, começa a correr a afirmação de que os ofídios brasileiros foram chamados de “cobras” por uma possível associação errada dos portugueses ao achar que se tratavam de ofídios indianos. Por sinal, história bem parecida com aquela de que os nativos brasileiros são chamados de índios por esse motivo e blá, blá, blá.

Conclusão

Como vimos, o nome “cobra” é utilizado para designar os nossos queridos répteis ápodos, de corpo vermiforme e língua bífida há muito tempo. Desde antes dos ingleses encontrarem as temidas najas e desde antes dos nossos patrícios desembarcarem em terras tupiniquins. Se seria válido mudar a linguagem técnica? Não sabemos (e nem é essa a intenção do texto). No entanto, caso um dia alguém corrija você por ter chamado algum ofídio de cobra, não hesite em discutir a correção. Claro, desde que seja de forma educada, com rigor científico e dentro de todas as premissas da ética e do bom convívio profissional, não é mesmo?

Texto por: Hugo Fernandes Ferreira & Fábio Nascimento, originalmente publicado em Herpeto.org.

Para comentários de especialistas no assunto veja o texto na íntegra aqui.

Amor e guerra: Rã ‘Wolverine’

Rãs tem a morfologia das mãos e pés altamente conservados evolutivamente, possuindo quatro e cinco dedos respectivamente. Com exceção de duas espécies japonesas de rãs da família Ranidae, Babina subaspera (Fig. 1) B. holsti, que possuem uma estrutura semelhante a um dedão na pata dianteira, fazendo o animal parecer possuir cinco dedos na mão.

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Figura 1: Babina subasperaRã “Wolverine” por © Noriko Iwai

A espécie B. subaspera vive na região das Ilhas Amami, no Sul do Japão. Exemplares machos desta rã apresentam “pseudo-polegares” nas patas, o que intrigou o pesquisador Noriko Iwai, da Universidade de Tóquio. Esse dedo extra libera uma garra, que na verdade é um espinho; um complexo de elementos esqueletais, músculos, tecidos conjuntivos e pele. O esqueleto (ósseo ou cartilaginoso) que existe dentro do falso polegar é definido como “prepollex”, que seria literalmente um dedo extra, um rudimento, apresentando uma extremidade pontiaguda e curvada na direção oposta ao primeiro dedo, sendo definido como espinho prepolical (Fig. 2).

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Figura 2: Espinho prepolical em B. subaspera, © Noriko Iwai

O porquê desse “quinto dedo” existir em algumas espécies de vertebrados ainda permanece um mistério evolutivo, mas em B. subaspera (Fig. 3), trabalhos de campo demonstram que é usado em combates por território e possui papel importante acasalamento. Ambos, macho e fêmea, possuem esse espinho que fica recoberto por pele, porém, nos machos, os espinhos são tipicamente maiores. Apesar de ambos o possuírem, apenas os machos da espécie usam o espinho, achado que leva o Dr. Iwai a acreditar que estes estejam primariamente relacionados à ancoragem do macho na fêmea durante a cópula (amplexo).

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Figura 3:  Corte histológico corado e figura esquemática mostrando cartilagem (azul) e ossos (vermelho) da mão direita de B. subaspera , confira a posição dos metacarpais (I,II,III e IV) e espinho prepolical (*). (Tokita & Iwai, 2010)

As condições nas ilhas Amami tornam o combate, e a necessidade de armamento, um fator chave para o sucesso de acasalamento das rãs. Indivíduos lutam por lugares para construir os ninhos, assim a capacidade de lutar contra os concorrentes pode ser crucial. No combate, os machos primeiro se abraçam e depois golpeiam o oponente com o espinho prepolical exposto, causando ferimentos no dorso (Fig. 4).

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Figura 4: Macho de B. subaspera (acima) com marcas dorsais de combate e fêmea (abaixo) com cicatrizes localizadas apenas na região axilar. (Iwai 2012)

Este estilo de luta ajuda a confirmar a teoria de que os espinhos eram originalmente usados para abraçar o parceiro sexual (Fig. 5).

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Figura 5: Macho e fêmea em amplexo. Note a posição de fixação do espinho prepolical. (Iwai, 2012)

O fato é que por apresentar uma estrutura retrátil usada como arma de defesa fez muitas pessoas associarem o anfíbio ao personagem Wolverine, da franquia X-men, que possuía garras retrateis compostas por uma liga metálica fictícia, o Adamantium, e que confere grande poder ao personagem. Os combates entre os machos de B. subaspera podem ser vorazes, talvez não tão parecido com o estilo de luta do Mutante Logan, mas não menos empolgantes.

“Mais pesquisa é necessária para ver como o pseudo-polegar evoluiu e como ele veio a ser usado para a luta”, diz Dr. Iwai.O Dr. Iwai  tem estudado a rara espécie desde 2004, com o intuito de entender a distribuição e  hábitos reprodutivos; todos fatores que poderiam contribuir com a conservação da espécie. O uso da estrutura como uma arma, e o perigo das rãs que se prejudicam com ele, fazem do pseudo-polegar  uma contribuição intrigante ao estudo da morfologia da mão, conclui Dr. Iwai.

Por: John A. Andrade, membro do NUROF-UFC

REFERÊNCIAS:

MailOnline

Natgeo

Iwai, N. (2012) Morphology, function and evolution of the pseudothumb in the Otton frog. Journal of Zoology 289 (2013) 127–133. (doi:10.1111/j.1469-7998.2012.00971.x)

Tokita, M. & Iwai, N. (2010) Development of the pseudothumb in frogs. Biol. Lett. (doi:10.1098/rsbl.2009.1038)

O veneno da Cobra-coral azul (Calliophis bivirgatus)

 

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Calliophis bivirgatus | © Tom Charlton

 

A ameaçadoramente bela Cobra-coral azul se alimenta de outras serpentes, incluindo outras serpentes ofiófagas, como os gêneros Bungarus e Ophiophagus. Para imobilizar suas presas essa serpente utiliza uma peçonha extremamente desagradável.

Encontrada no Sudeste Asiático, Calliophis bivirgatus caracteriza-se pela coloração vermelho chamativa da cabeça e cauda, e pelas linhas azuis brilhantes que percorrem o comprimento do corpo. Em um novo artigo publicado na revista científica Toxins, pesquisadores da Universidade de Queensland e várias outras instituições descrevem o único e mortal veneno dessa espécie – uma toxina que proporciona um grande choque no sistema fisiológico de suas presas.

A espécie é de interesse para anatomistas e toxicólogos no que diz respeito há evolução e diversificação do sistema de produção de venenos no grupo das serpentes, pois juntamente com a congênere C. intestinalis, apresentam alongadas glândulas de veneno (Fig. 1) que se estendem até um quarto do comprimento do corpo.

 

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Fig. 1: Setas indicam glândulas especializadas na produção e estocagem de veneno em Calliophis bivirgatus. Foto retirada do artigo.

De importância médica, apesar de poucos casos de acidentes com humanos envolvendo a espécie serem confirmados. Responsável por pelo menos uma fatalidade humana, e suspeitas de ter ocasionado pelo menos mais uma. Não há anti-soro para a picada da espécie.

Quase imediatamente depois de ser mordido, a vítima entra em um estado catatônico agonizante, com seus músculos presos em plena flexão. O veneno faz com que todos os nervos disparem simultaneamente, provocando espasmos no corpo inteiro. Paralisado, o animal pode ser posteriormente deglutido pela serpente.

Pode parecer cruel, mas a evolução equipou essa serpente com esse veneno particularmente poderoso por uma razão: este predador altamente especializado gosta de caçar outras cobras peçonhentas, que são tipicamente muito rápidas e também excepcionalmente perigosas.

Os cientistas já viram esse tipo de toxina antes, mas nunca em uma cobra, muito menos em qualquer outra espécie de vertebrado. Alguns animais, como alguns escorpiões e aranhas, desenvolveram toxinas semelhantes. O molusco gastrópode Conus geographus, por exemplo, injeta um tipo semelhante de toxina nos peixes, fazendo com que eles entrem em uma paralisia instantânea, deixando os músculos completamente tensos como em um espasmo parecido com tétano.

O veneno da Cobra-coral azul faz praticamente a mesma coisa, e os cientistas dizem que é um bom exemplo de evolução convergente (onde uma característica similar emerge de forma independente em diferentes espécies). Uma vez dentro do corpo, a toxina faz com que todos os nervos dentro do corpo de um animal liguem simultaneamente, fazendo com que o animal entre em um estado de dormência ou congelamento. Os pesquisadores referem-se a este estado como paralisia espástica, ao contrário da paralisia flácida induzida por outro veneno de cobra.

O veneno de C. bivirgatus mantém as toxinas do canal de sódio abertas, bloqueando o fechamento do canal que terminaria a transmissão do nervo e permitiria que o músculo voltasse ao estado de repouso.

As toxinas nas serpentes e outros grupos surgiram como uma forma rápida de subjugar suas presas, impedindo que estas causem danos à serpente na alimentação. Nos répteis do grupo toxicofera iniciais, os dentes pré-existentes eram suficientes para a causar uma ferida, permitindo a entrega de veneno por diferença de pressão através da “mastigação” e só posteriormente dentições mais especializadas evoluíram nos grupos. 

Ironicamente, este veneno apelidado de Calliotoxina poderia ser usado na farmacologia para desenvolver novos medicamentos. Os cientistas estão agora particularmente interessados em sua capacidade de agir como um analgésico em seres humanos.

Por: John A. Andrade, membro NuRof-UFC

REFERÊNCIAS:

GIZMODO   acessado 03.11.2016

Yang, D.C. et al: The Snake with the Scorpion’s Sting: Novel Three-Finger Toxin Sodium Channel Activators from the Venom of the Long-Glanded Blue Coral Snake (Calliophis bivirgatus)., Toxins 2016, 8, 303. (doi: 10.3390/toxins8100303 )