Na comunidade acadêmica, é bastante comum a prática do policiamento (muitas vezes de forma arrogante) do uso de termos populares em detrimento dos técnico-científicos por parte de muitos de seus membros. Entre alguns biólogos, por exemplo, há uma correção corriqueira sobre o uso do termo “cobra” (Fig. 1).
“O correto não é cobra (Fig. 2), é serpente. Cobra é nomenclatura para as serpentes do gênero Naja”. Quantas dezenas de vezes já não ouvimos isso? Pois bem, o post de hoje é fruto de conversas entre os dois autores – por sinal, dois mastozoólogos – e de pesquisas avulsas em momentos avulsos, que só aqueles que sofrem de insônia (todos os acadêmicos?) sabem como é. Tentaremos mostrar aqui que essa correção não faz muito sentido do ponto de vista etimológico e histórico.
1) A origem da palavra “cobra “
A palavra “cobra” em português vem do latim “coluber”/”colubra”. Coluber vem do proto-indo-europeu *(s)k(‘)ol-. e também significa “verme”. O Proto-Indo-Europeu deu origem a um monte de línguas, dentre elas as germânicas, que inclui o inglês. Já deu pra perceber que a origem da palavra é bem mais antiga do que qualquer estudo de descrição herpetológica, não é? Mas tem mais. Vejamos.
2) A origem da palavra “serpente”
“Serpente” também vem do latim “serpēns”, que significa “aquele que rasteja”. Assim como a palavras “hérpō” (de onde se origina herpetologia), do grego antigo e “sárpati”, do Indiano Antigo (ambas também significam “aquele que rasteja”). Todas elas tem a mesma origem, a palavra proto-Indo-européia “*serpe-“.
3) A origem da palavra “naja”
A palavra “naja” vem do Hindi antigo “nāgá, que significa serpente e é originária do Proto-Indo-Europeu “*(s)nēg-o-“, que deu origem à palavra do inglês antigo “snaca”, que no inglês moderno escreve-se como “snake”. Sendo assim, as palavras “naja” e “snake” tem uma mesma origem.
4) A origem da palavra “cobra” na língua inglesa
A palavra “cobra” realmente é utilizada na literatura de língua inglesa para designar alguns ofídios da Família Elapidae (Fig. 4), conhecidos também como “najas”, animais ainda hoje símbolos da Índia, país sob domínio da Coroa Britânica até 1950. Entretanto, é importante ressaltar que a Índia, antes do domínio britânico, era de domínio ibérico. A palavra “cobra” já era (e continua sendo) utilizada em Portugal para designar os ofídios de uma maneira geral. Além disso, os portugueses antes mesmo de chegarem à Índia, já sabiam da existência das chamadas “cobras-de-capelo” (é só lembrar que existem najas no Egito e que eram conhecidas desde a Idade Média e até antes disso). Quando viram que em terras hindus também havia “cobras-de-capelo”, assim as denominaram. Essa nomenclatura é uma referência à capacidade desses ofídios em expandirem suas costelas anteriores quando ameaçadas, o que lembra um “capelo”, que tem origem latina e significa “chapéu”. Ou seja, as najas seriam as “cobras-de-chapéu” ou “cobras-de-capuz”.
No entanto, com o advento do domínio britânico em território indiano, as primeiras literaturas de grande alcance mundial envolvendo descrições de répteis da Índia eram descritas em língua inglesa, as quais utilizaram traduções livres das denominações portuguesas (que já estavam disseminadas em bibliografias inclusive) e especificaram o termo “cobra” para as serpentes do gênero Naja.
Obs.: e nessas traduções, o “de-capelo” foi embora sabe-se lá o motivo.
5) E como nasceu essa história de que “cobra” é tecnicamente errado?
Agora vamos às divagações. Não se sabe ao certo, mas essa história de que o correto seria “serpente” e não “cobra” pode ter nascido do estudo de zoólogos brasileiros antigos sobre as bibliografias britânicas, aliado à existência de outro mito ainda bastante corrente: o de que, em 1500, os primeiros navegantes portugueses que aqui desembarcaram acharam que estavam chegando à Índia (sabemos bem hoje que isso não é verdade). A partir dessas premissas, começa a correr a afirmação de que os ofídios brasileiros foram chamados de “cobras” por uma possível associação errada dos portugueses ao achar que se tratavam de ofídios indianos. Por sinal, história bem parecida com aquela de que os nativos brasileiros são chamados de índios por esse motivo e blá, blá, blá.
Conclusão
Como vimos, o nome “cobra” é utilizado para designar os nossos queridos répteis ápodos, de corpo vermiforme e língua bífida há muito tempo. Desde antes dos ingleses encontrarem as temidas najas e desde antes dos nossos patrícios desembarcarem em terras tupiniquins. Se seria válido mudar a linguagem técnica? Não sabemos (e nem é essa a intenção do texto). No entanto, caso um dia alguém corrija você por ter chamado algum ofídio de cobra, não hesite em discutir a correção. Claro, desde que seja de forma educada, com rigor científico e dentro de todas as premissas da ética e do bom convívio profissional, não é mesmo?
Texto por: Hugo Fernandes Ferreira & Fábio Nascimento, originalmente publicado em Herpeto.org.
Para comentários de especialistas no assunto veja o texto na íntegra aqui.
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