As jararacas são serpentes da família Viperidae, peçonhentas e de comportamento agressivo. Seus mecanismos de envenenamento compreendem, pelo menos, três ações principais:
1. Ação proteolítica ou inflamatória (degrada componentes da matriz extracelular, causando necrose tecidual);
2. Ação coagulante (compete inibindo uma molécula ativadora da cascata de coagulação);
3. Ação hemorrágica (destrói as paredes dos vasos sanguíneos).
A atuação conjunta das três ações leva uma presa (dependendo do tamanho e do estado de saúde) à morte em um intervalo de minutos a horas (Figura 1).
Figura 1. Jararaca do Norte (Bothrops atrox), natural da Serra de Ubajara, Ceará. (Fonte: Ávila, RW/NUROF-UFC).
Porém, as jararacas não são apenas predadoras. Elas também podem se comportar como presas.
Mas, se carregam uma peçonha tão poderosa, que pode destruir os tecidos animais, como um predador consegue comê-las sem se envenenar? 🤔
Alguns animais já tiveram registrada essa fantástica característica de predar uma jararaca sem morrerem envenenados. Mamíferos como doninhas e mangustos, alguns pássaros, lagartos e outras serpentes já foram apontados como “imunes” ao veneno de jararacas e cascavéis.
Por exemplo, a acauã (Herpetotheres cachinnans) é um falconídeo que foi visto recentemente predando uma Jararaca do norte (Bothrops atrox) em uma reserva na Floresta Amazônica do Equador1. O curioso é que a ave perspicaz arranca a cabeça da serpente antes de se alimentar do corpo… Claramente evitando comer a região das glândulas de veneno, e se esquivando de se expor à intoxicação (Figura 2).
Figura 2. Acauã decapita jararaca do norte. (Fonte: Medrano-Vizcaíno, 2019).
Bem, se a acauã parece ser um falcão “arretado” de corajoso, por enfrentar uma jararaca para se alimentar, vejamos o próximo predador da nossa lista.
O Cassaco (Didelphis albiventris), também conhecido como Gambá de orelha branca, Saruê ou Mucura) é um pequeno marsupial registrado em quase todos os estados do Brasil e em países vizinhos. Apesar da fama em vida livre, o fenômeno precisava ser estudado de forma mais metódica. Em um estudo antigo, pesquisadores registraram a predação de Jararacas (Bothrops jararaca), por Cassacos em cativeiro2(Figura 3). Observaram que tanto machos, quanto fêmeas, adultos e jovens, tinham o mesmo comportamento: mordiam a serpente na cabeça, depois as sacudiam forte; ao percebê-las imóveis, iniciavam a ingestão, comendo primeiro a cabeça. Em outro estudo, com outra espécie de Cassaco e predação de cascavéis, perceberam que mesmo quando eram picados, não havia sinais clínicos e a predação não era interrompida3.
Figura 3. Sequência de comportamento de predação de Jararaca por Cassaco. (Fonte: Oliveira et al., 1999).
Isso sim é que é ter “sangue no olho”! Nada de jogar a cabeça fora; é a primeira parte que é comida.
Estudos posteriores mostraram que Cassacos que se alimentam de serpentes peçonhentas desenvolvem ferramentas bioquímicas de evasão de diferentes moléculas tóxicas, neutralizando as ações danosas dos venenos em seu organismo. É um tipo de “imunidade”, adquiridas em longo…longo prazo, num processo denominado como coevolução adaptativa. Proteínas anti-hemorrágicas4 e ausência do fator pró-coagulante de van Willebrand5 já foram descritas como estratégias de evasão à toxicidade dos venenos em Cassacos.
Já a cobra preta Muçurana (Clelia clelia) é conhecida há décadas por “arrochar o nó” quando o assunto é Jararaca. Estudos do final do século passado confirmaram que seu soro sanguíneo aquecido era capaz de neutralizar efeitos inflamatórios e necróticos em pele e musculatura de camundongos de laboratório intoxicados experimentalmente pela Jararaca de veludo (Bothrops asper)6,7. Tanto o soro de Muçuranas adultas quanto de recém-nascidas tinha esse fantástico poder. Ô bichas “pais d’égua”!
Por último, o crocodilo americano (Alligator mississippiensis) foi o mais recente predador a ter confirmadas as propriedades antiveneno de jarararacas8. Seu soro sanguíneo foi testado em camundongos experimentalmente intoxicados por veneno de Jararaca cabeça de cobre (Agkistrodon contortrix), e observou-se neutralização da ação hemolítica de enzimas metaloproteinases. Aí eu “dou valor”!
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Confira os termos regionais:
Arretado: qualidade de algo ou alguém que é muito bom em algum aspecto.
Sangue no olho: indivíduo valente.
Arrochar o nó: enfrentar bravamente.
Pai d’égua: Legal, bacana.
Dar valor: valorizar; curtir; gostar muito.
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Autora: Roberta da Rocha Braga
Referências
- MEDRANO-VIZCAÍNO, P. Predating behavior of the Laughing falcon (Herpetotheres cachinnans) on the venomous Amazonian pit viper Bothrops atrox (the use of roads as a prey source). BioRisk, v. 14, p. 25–30, jul. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.3897/biorisk.14.35953>.
- OLIVEIRA, M. E.; SANTORI, R. T. Predatory Behavior of the Opossum Didelphis albiventris on the Pitviper Bothrops jararaca. Studies on Neotropical Fauna and Environment, v. 34, n. 2, p. 72–75, 9 ago. 1999. Disponível em: <http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1076/snfe.34.2.72.2105>.
- ALMEIDA-SANTOS, S. M. et al. Predation by the Opossunn Didelphis marsupialis on the Rattlesnake Crotalus durissus. Current herpetology, v. 19, n. 1, p. 1–9, 2000. Disponível em: <http://joi.jlc.jst.go.jp/JST.Journalarchive/hsj2000/19.1?from=CrossRef>.
- NEVES-FERREIRA, A. G. . et al. Isolation and characterization of DM40 and DM43, two snake venom metalloproteinase inhibitors from Didelphis marsupialis serum. Biochimica et Biophysica Acta (BBA) – General Subjects, v. 1474, n. 3, p. 309–320, maio 2000. Disponível em: <https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0304416500000222>.
- JANSA, S. A.; VOSS, R. S. Adaptive evolution of the Venom-targeted vWF protein in opossums that Eat Pitvipers. PLoS ONE, v. 6, n. 6, 2011.
- LOMONTE, B. et al. Neutralization of local effects of the terciopelo (Bothrops asper) venom by blood serum of the colubrid snake Clelia clelia. Toxicon, v. 20, n. 3, p. 571–579, jan. 1982. Disponível em: <https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/0041010182900514>.
- LOMONTE, B. et al. [The serum of newborn Clelia clelia (Serpentes: Colubridae) neutralizes the hemorrhagic action of Brothrops asper venom (Serpentes: Viperidae)]. Revista de biologia tropical, v. 38, n. 2A, p. 325–6, nov. 1990. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2101463>.
- FINGER, J. W. et al. American Alligator (Alligator mississippiensis) Serum Inhibits Pitviper Venom Metalloproteinases. Journal of Herpetology, v. 54, n. 2, p. 151, 11 mar. 2020. Disponível em: <https://bioone.org/journals/journal-of-herpetology/volume-54/issue-2/19-027/American-Alligator-Alligator-mississippiensis-Serum-Inhibits-Pitviper-Venom-Metalloproteinases/10.1670/19-027.full>.
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